Lia-se perfeitamente a frase num pequeno anúncio de Jornal.
"Compra-se alma. Paga-se bem"Fausto achou a proposta interessante.
Como nunca foi crente ou poeta, sempre achou a própria alma algo de grande inutilidade.
Guardava a alma na gaveta das cuecas e poucas vezes tivera motivos para a tirar de lá. Mas agora havia um: dinheiro.
Desde que a proposta fosse boa, Fausto iria trocar a alma por uns cobres.
Poderia não ser o acto mais católico do mundo, mas também não era católico, nem budista, nem protestante.
A transacção foi simples. A maquia era boa. Bastou uma assinatura ao número do contribuinte.
Em minutos, Fausto era um homem desalmado.
Fausto nem perguntou o que iriam fazer da sua alma. Era um assunto pouco importante. Saiu da loja como bolso cheio notas e um grande sorriso estampado no rosto. Desde então Fausto prosperou.
Aplicou o dinheiro na bolsa e ganhou. Com o lucro comprou uma empresa falida e transformou a num grande negócio. Meteu se nos mais arriscados projectos sem nenhum medo, pois quem não tem alma não teme. Tornou se num empresário de sucesso. Deu entrevistas a todos os jornais do país, ficou famoso e cada vez mais vaidoso consigo mesmo. Um belo dia, estava Fausto no seu apartamento de três andares em Nova Iorque quando a morte chegou.
Vim buscara sua alma.
Deve ter se enganado no apartamento. Já não tenho alma há muito tempo.
O senhor não se chama Fausto Matias de Sousa?
Sim, é o meu nome.
Então não há engano algum. Por favor, entregue me a sua alma sem grandes resistências. Tenho hoje uma agenda cheia. Dentro de vinte minutos haverá um atentado no metro, ali pelos lados do Harlem, e só isso vai ser o suficiente para ocupar me a tarde inteira.
Caríssima morte, já disse que não tenho alma alguma. Vendi a faz mais de trinta anos. Se duvida, olhe aqui o recibo.
Hum... Tanto? Pagaram lhe bem. Já vi gente que vendeu a alma por muito menos.
Era uma boa alma, quase sem uso.
Praticamente não a tirava de casa.
Bem, o recibo parece me verdadeiro. Peço desculpa pelo incómodo.
Desde que instalaram os novos computadores lá no inferno, aquilo tem se tomado um inferno, se me permite a redundância.
Se veio buscar a minha alma é sinal de que alguém ainda a tem e esse alguém irá morrer hoje. É possível saber quem é essa triste figura?
Sim, sim. Posso usar o seu telefone?
Claro. Está logo ali naquela mesa, por baixo do Picasso falso.
A morte arrastou a sua foice até o telefone. Fez a chamada. Enquanto isso, Fausto fumava um charuto cubano.
O apartamento foi tomado por uma cortina de fumo, tresandando a charuto e enxofre.
Ora bem, senhor Fausto, já descobri o equívoco. Na verdade, a sua alma pertence hoje a um famoso cientista, que mora do outro lado do Central Park.
E ele vai morrer de quê?
Vai escorregar no sabonete e bater com a cabeça na banheira. Vai ser uma grande partia. O tipo estava prestes a descobrir uma vacina para uma epidemia que irá alastrar se pelo mundo dentro de dois ou três anos a que irá matar toda a população do planeta.
Toda a população?
Sim. Vai ser uma trabalheira. O mundo vai ficar reduzido às baratas e aos desalmados como o senhor que como não têm alma não podem morrer.
Somos muitos?
Imensos. Só em Nova lorque há mais de dois milhões.
Pena. Estou a ver que os engarrafamentos vão continuar.
Bom, tenho de ir.
Fausto despediu-se da morte.
Foi para a varanda e pôs se a olhar a cidade. Estranha era a vida, pensou. Pôs se a reflectir no futuro atroz da humanidade. Era trágico que só por uma questão da troca de uma alma morresse o tal cientista no seu lugar e, com ele, toda a esperança do mundo. Nesse exacto instante, Fausto avistou uma pequena barata ao pé de um jarro de plantas. Olhou fixamente e percebeu que entre os dois havia coisas em comum. A mesma ausência de sentimentos ao mesmo destino: partilhar o planeta só porque eram representantes de duas espécies impuras. Fausto foi tomado então por uma comoção.
Sentiu que precisava fazer algo. Não podia aceitar o futuro que se avizinhava de maneira passiva. Caminhou em direcção à barata e sem pestanejar tomou uma atitude que iria marcar todo o resto da sua eterna vida.
Menos uma!Gritou ao pisar a barata, sem piedade.